Arquitetura e memória: a experiência olfativa como recordação

Quando perguntado sobre suas memórias em relação à casa onde passou parte da sua infância, o arquiteto finlandês Juhani Pallasmaa diz que, mais do que a visão, suas recordações são baseadas no cheiro da casa. Segundo ele, cada casa tem seu cheiro, o qual nem sempre percebemos quando estamos nela, mas ao voltarmos o reconhecemos de imediato.

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O olfato é um gatilho poderoso para a construção de memórias, mais até do que a visão e a audição. Isso porque ele está intimamente ligado às partes do cérebro que processam a emoção e a memória. Quando sentimos um cheiro específico, ele é primeiro processado pelo bulbo olfativo, localizado no sistema límbico do cérebro. Esta é a mesma parte que processa a emoção e a memória, o que faz com que os cheiros sejam tão poderosos em evocar experiências e sentimentos passados. Assim, ao encontrarmos um odor associado a uma experiência ou emoção passada, ele pode desencadear uma poderosa resposta emocional e memórias vívidas.

Essa “biblioteca de cheiros” armazenada na memória de cada um pode variar desde o cheiro da grama recém cortada, que evoca lembranças dos verões da infância brincando ao ar livre, até o cheiro do pão sendo assado no forno da cozinha, que traz lembranças de reuniões familiares ou até mesmo de alguma pessoa em específico. Uma ampla gama de situações que mostram também a subjetividade incorporada nesse sentido, já que os cheiros podem ter efeitos diferentes em cada pessoa. O mesmo cheiro pode desencadear uma memória agradável para uma e desagradável para outra.

Entretanto, para além desse desafio, se entendermos o papel fundamental da arquitetura em criar experiências e memórias marcantes, incorporar propositalmente o sentido do olfato pode contribuir para enriquecer a permanência do usuário. São muitos aspectos que constroem a identidade de uma arquitetura, sua funcionalidade, materialidade, arrojo estrutural, história, entre muitos outros. Porém, eles quase sempre estão focados em atender exclusivamente à visão, colocando em segundo plano o envolvimento de outros sentidos, como o tato, a audição, o olfato e o paladar.

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Foto: Urufor

Incorporar o olfato na arquitetura faz parte de uma investigação que desenvolve soluções considerando a inter-relação de todos os canais sensoriais que usamos para ler e perceber os espaços que nos cercam. Essa linha de atuação e pesquisa também está diretamente relacionada à neuroaquitetura, ou seja, a ideia de que os ambientes podem efetivamente trazer melhorias para as pessoas, sendo aprimorados para gerar experiências saudáveis aos usuários. A neurociência conseguiu, com base em estudos e exames, como a ressonância magnética e o eletroencefalograma, observar que alguns dos gatilhos que ativam certas regiões do cérebro são aspectos da arquitetura como cores, texturas, iluminação e, por que não, cheiros. Complementando a ideia da neuroarquitetura, já existem discussões referentes ao conforto olfativo e o impacto dos odores no bem-estar dos usuários baseadas em estudos que afirmam que, quando excessivamente fortes, os odores podem perturbar o conforto físico e psicológico e até provocar irritação nos olhos, nariz e garganta, náuseas e dores de cabeça. Por muito tempo, também podem afetar o humor, a ansiedade e o nível de estresse.

Sendo assim, orientar os espaços através dos sentidos é uma estratégia importante que pode ser aplicada em favor de uma arquitetura que inspire experiências e memórias positivas, envolvendo os ocupantes em um nível mais profundo de interação.

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Residência RC / Miguel Pinto Guimarães Arquitetos Associados. Foto: © Rômulo Fialdini

De forma prática, é possível perceber algumas lojas de varejo que usam aromas cuidadosamente selecionados para criar uma atmosfera particular e aprimorar a experiência de compra. Em alguns lobbies de hotéis, são utilizados difusores de aromas para criar uma atmosfera acolhedora e relaxante. Além disso, alguns museus experimentaram incorporar cheiros em exposições para aprimorar a experiência e criar um ambiente mais imersivo.

Entretanto, uma abordagem mais interessante e intrinsecamente relacionada ao projeto arquitetônico é incorporar odores vindos diretamente dos materiais de construção ou mobiliários selecionados. Pallasmaa, em entrevista a Ila Bêka e Louise Lemoine, diz que a arquitetura poderia integrar de forma mais ativa os odores como componentes projetuais, citando como exemplo a madeira. Segundo o arquiteto, esse material expele um odor confortável que agrada o “tato do nariz”. Nesse sentido, outros materiais naturais também apresentam cheiros característicos como pedras ou tecidos, além disso, eles podem ser tratados com óleos perfumados ou outras fragrâncias para criar um aroma agradável.

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Estúdio em azotea Tapachula / TO. Imagem © Jaime Navarro

Ademais, a incorporação dos jardins paisagísticos também faz parte do projeto arquitetônico e pode ser usada para alimentar as memórias olfativas dos seus usuários, liberando fragrâncias naturais agradáveis e marcantes. A casa NGÕ, construída no Vietnã, por exemplo, possui jardins internos onde são cultivadas especiarias e plantas aromáticas para ajudar a repelir insetos e também relaxar o espírito. As plantas podem inclusive ir mais além na gama de sensações. Pesquisas afirmam que o aroma de flores frescas pode criar uma atmosfera acolhedora e convidativa, enquanto o aroma de frutas cítricas ou hortelã-pimenta pode promover o estado de alerta e o foco.

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The NGÕ Alley House / DOG House. © Cao Xuan Hoa

Desenhar uma arquitetura é uma atividade sobre a qual recai grande responsabilidade. Os planos organizados na tela do computador ou na folha de papel serão palco para a vida de quem os habitará, marcando experiências e memórias que serão carregadas por toda a sua existência. Dessa forma, é importante que os arquitetos usufruam de todos os artifícios possíveis para gerar espaços de qualidade, incorporando ao desenho outras potencialidades da arquitetura para além daquelas relacionadas ao sentido da visão. Sendo assim, pensar no cheiro do espaço projetado pode ser uma estratégia interessante para abordar a arquitetura a partir de uma visão holística, não apenas em projetos residenciais, onde a relação entre ser humano e ambiente construído é ainda mais íntima, mas também em espaços hospitalares, culturais e comunitários, estimulando novas experiências e construindo memórias.

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Sobre este autor
Cita: Camilla Ghisleni. "Arquitetura e memória: a experiência olfativa como recordação" 11 Jun 2023. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/1000577/arquitetura-e-memoria-a-experiencia-olfativa-como-recordacao> ISSN 0719-8906

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